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8 janvier 2014

O país que nos impõem

Novamente, rios de prosa lacrimejante, uma torrente avassaladora de encómios e insensatez inundou hoje a imprensa desportiva e a generalista, incluindo os órgãos de informação habitualmente comedidos e dignos de apreço. Tudo a propósito do passamento do famoso jogador de futebol, Eusébio da Silva Ferreira. Homem naturalmente modesto de temperamento, excelente praticante da modalidade, pelo que, nessa área sócio-profissional, e nos limites do bem senso e do bom gosto, merecedor das devidas reverências e louvores póstumos. Que, aliás, em vida, já o haviam copiosamente obsequiado numa repetitiva e até enjoativa litania.

Porém, uma limitada fracção da população alfacinha, atascada numa precária existência e possuidora de um incipiente imaginário cívico-cultural, numa aliança tácita com as populistas autoridades municipais - estas, por sua vez, em consonância espontânea com os dirigentes do Sport Lisboa e Benfica, clube a quem interessa uma mega - operação memorialística em torno do seu principal trunfo de propaganda - , deram corpo a um insólito espectáculo fúnebre. Que logo, de forma abusiva, endossaram a prestação laudatória ao conjunto da nação!

E assim tivemos o inenarrável cerimonial da actual indigência pátria em estado puro. As televisões e as rádios a verterem em catadupa rançosos epicédios e a manipularem vergonhosamente os moles corações e a frouxa inteligência da massa dos adeptos da bola, curiosos e mirones, e sabe-se lá, quantos outros portugueses mais.

Não há pois memória no país de tão desajustadas e retumbantes exéquias. Liturgias, orações, ranho e ranger de dentes, na sequência de um imperial périplo urbano do desportivo féretro pelo coração de Lisboa. Trajecto que do Estádio da Luz, agora  apenas in petto, Estádio E. S. Ferreira, seguiu pela futura Avenida E.S. Ferreira, rumo à Càmara Municipal da cidade, no futuro Largo E. S Ferreira. Para depois da sagração pela vereação municipal seguir para o cemitério do Lumiar, futuro prado do repouso E. S. Ferreira

Por conseguinte, uma pompa e gosto similares, ou quiçá mais avantajados, aos que cultiva a grande Coreia do Norte ao homenagear os amados líderes desse tão livre e democrático país, ou aos que ainda sobrevivem em certas repúblicas bananeiras de maior rusticidade. Devolveram pois à capital portuguesa, estas explosões de luto e histérica comoção, neste ano da graça de 2014, a imagem tardomedieval de um orquestrado e freirático pranto colectivo que faria inveja ao mais exigente cabido patriarcal de outras eras.

Um mais rasteiro e execrável populismo manifestou-se ainda, e em grande escala, ao nível do quadrante político. As piranhas caçadoras do voto acéfalo das multidões culturalmente indefesas, depressa se posicionaram a disputar a precedência na proposta de mais homenagens e preitos, qual o mais disparatado e estapafúrdio, ao falecido e aplaudido grande homem.

Quanto à quermesse de despojos simbólicos  - coloridos ex-votos e flâmulas depositados no pedestal e na figura de bronze do famoso futebolista, há muitos anos já erigida no recinto do mencionado campo de jogos -, supera a mais delirante das imaginações kitsch.  Um memorial de trapos que a direcção do mesmo clube anunciou desejar preservar ad eternum. Uma ridícula e monstruosa  expressão da indigência crítica e estética das elites desportivas do país.

Enfim, o que aos olhos do mundo exibe, clamorosamente, todo este desolador e sombrio carnaval cívico-religioso é a inteira falência do regime. No que toca à educação das populações como à selecção dos seus dirigentes.

Em suma, um país pimba, uma sociedade marcada pela ausência do sentido da medida, a incapacidade de hierarquização dos valores, a pieguice como padrão de gosto. Passadas quatro décadas do final da obscura ordem salazarista, temos pois a mesma pobre massa humana afundada num pântano de miséria, miséria sobretudo cultural. Bem superior, aliás, à escassa fortuna de bens materiais que, apesar da corrupção impune e da inépcia de ondas sucessivas de governantes, sempre conseguiu de algum modo arrecadar.

E assim nos deparamos com uma triste  humanidade desbussolada, sem aptidão para discernir as astúcias de quem a subjuga, incapaz de autonomizar a razão da sua existência.

 

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